terça-feira, 30 de junho de 2009

O social-liberalismo do governo Lula e os dilemas para a esquerda brasileira e os movimentos sociais

Recentemente, participei de um tópico no Botequim Socialista (comunidade no Orkut) sobre uma recente entrevista do Chico de Oliveira para o jornal Valor Econômico em que colocava FHC à esquerda de Lula:

E fiz uma análise sobre o caráter social-liberal do governo Lula e suas implicações para a reorganização dos movimentos sociais e da esquerda brasileira.

Segue o texto com algumas alterações:

Em seis anos de governo, já ficou explícita a ausência de políticas públicas estruturantes no governo Lula, trocadas pelas tais políticas sociais compensatórias (Bolsa Família, ProUni etc.) - prefiro não chamá-las de "assistencialistas", pois possuem um caráter diferenciado em relação às clássicas políticas populistas de clientelismo que deve ser levado em conta.

Ainda assim, o Bolsa Família não é por si só o único fator do "amortecimento" das mobilizações populares. A cooptação dos principais movimentos sociais e entidades estudantis e sindicais (a "tríade" formada por CUT, UNE e MST e outros movimentos sociais do campo e da cidade e entidades sindicais) se dá também pela tese ilusória de "governo em disputa". O próprio MST aceitou receber cestas básicas do governo para distribuir entre os assentamentos como forma de manter a luta pela reforma agrária, mas nunca recebeu nenhum tipo de incentivo do Bolsa Família.

O fato é que poucos setores da militância da esquerda e dos movimentos sociais tinham expectativa de que o governo Lula poderia ter um caráter radical (isto é, antineoliberal e antiimperialista). Por outro lado, a grande maioria não pensava que o governo se renderia de forma tão breve e profunda às políticas neoliberais, foi uma surpresa mesmo aos setores de esquerda mais críticos ao governo Lula desde o seu início, como o PSTU (que defendia a absurda idéia de que a eleição de Lula poderia representar uma situação revolucionária e apresentou a tese de uma "frente popular preventiva").

Fora a permanência das políticas neoliberais na área econômica, há duas importantes diferenças do governo Lula para o governo FHC que implicam em uma releitura de como deve ser o combate à esquerda ao atual governo: o governo Lula possui uma maior base social, de caráter mais popular, para consolidar suas políticas e mescla as políticas neoliberais na economia com as políticas sociais compensatórias, o que não o coloca como um governo puramente neoliberal, mas sim "social-liberal".

O fenômeno do social-liberalismo tem fracassado na Europa (as experiências de Schröder na Alemanha e Blair na Inglaterra nos anos 90 e 2000 são emblemáticas) pelo seguinte: as políticas públicas no welfare state tinham um caráter estruturante e asseguravam uma melhora realmente significativa nas condições de vida da classe trabalhadora de seus países.

Em suas análises, Chico de Oliveira costuma dizer que enquanto no centro do capitalismo vigorava o bem-estar social, na periferia existia o "mal-estar social". E o Brasil estava incluído neste quadro de mal-estar social. Exceção feita aos governos Vargas – que, no contexto histórico da Grande Depressão, assegurou direitos sociais à classe trabalhadora conforme atrelava amplos setores do movimento operário brasileiro ao seu projeto de nacional-desenvolvimentismo conservador na época - e Jango, os setores explorados e oprimidos da população brasileira nunca experenciaram uma "época de ouro" em termos de políticas públicas em serviços públicos e redistribuição de renda, incluindo aí o período pós-ditadura a partir do governo Sarney até o governo FHC. O social-liberalismo do governo Lula chega neste contexto: uma desigualdade social abissal com um histórico bastante negativo de políticas públicas e programas sociais.

Ao mesmo tempo que redistribui a renda de forma superficial, isto é, sem mexer nas raízes da concentração de renda (como a questão agrária, por exemplo), ganhando base social entre trabalhadores da cidade e do campo e outros setores populares que há décadas não tinham algum benefício real, o governo Lula consegue a partir das políticas sociais compensatórias ampliar o mercado consumidor brasileiro, criando as condições para a dinamização e expansão do da economia brasileira, principalmente em setores da economia como a construção civil e o setor de serviços (que emprega centenas de milhares de jovens trabalhadores nas grandes cidades).

Ou seja, o social-liberalismo do governo Lula aparentemente se coloca como um oásis na ausência de um histórico de políticas públicas e de uma seguridade social digna à classe trabalhadora ao mesmo tempo que consegue agradar aos principais setores do empresariado nacional e internacional, ao capital financeiro e ao agronegócio por criar as condições de um mercado consumidor ampliado que assegura a dinamização da economia.

Por isso, questões e pautas como o combate à precarização do trabalho, a reforma agrária, a reforma urbana, a reestatização de empresas privatizadas no governo FHC, a questão ambiental (descartada pela construção de barragens e usinas hidrelétricas, transposição do Rio São Francisco etc.) estão longe de terem alguma relevância ao governo Lula, anulando qualquer expectativa que este "esteja em disputa", ou seja, não possui um caráter contraditório.

E como entram a esquerda e os movimentos sociais nisso tudo? Uma parte dos movimentos sociais ainda acredita na tese de que "o governo Lula está em disputa", de que há uma ala mais à esquerda capaz de influenciar os rumos do governo Lula, apesar de terem passado mais de 6 anos de governo e uma 'guinada à esquerda' hoje do governo Lula está fora de cogitação.

Outra parte, como o MST, fica em cima do muro e diz que não está na base do governo, mas também não é oposição. O MST aponta o grande capital como o principal inimigo a ser combatido (empresas ligadas ao agronegócio e às sementes transgênicas: Monsanto, Syngenta, Bayer, Bunge etc.). E a combatividade do MST no campo é, inegavelmente, algo impressionante. O problema da avaliação política do MST é que ela "esquece" que o grande capital tem o suporte do governo Lula e vice-versa. Portanto, o combate ao grande capital será coerente se for combinada com a crítica pela esquerda ao governo Lula. Importante ressaltar que há uma tensão interna no MST pouco conhecida.

Enquanto Stédile, principal dirigente do MST, mantém uma postura programática "nacional-desenvolvimentista", uma outra ala liderada por Gilmar Mauro (dirigente do MST paulista) e outros dirigentes defende que o MST tenha uma posição clara sobre o verdadeiro caráter do governo Lula e que rompa com as ilusões nacional-desenvolvimentistas ou de retomada do "projeto democrático-popular", pois a luta pela terra é algo que vai na contramão do capital (seja ele nacional ou internacional). Gilmar deu uma interessante entrevista para a revista Debate Socialista em 2008:

http://www.debatesocialista.com.br/entrevistagilmarmauro.html

Setores majoritários da oposição de esquerda ao governo Lula, que deveriam se aliar ao MST e a outros movimentos sociais no combate ao grande capital, priorizam a atuação institucional. Costumam apenas fazer a crítica ao governo Lula (o que não é taticamente equivocado, mas limitado se não envolve uma discussão sobre o caráter de classe do Estado capitalista e a inerência da corrupção ao capitalismo) pelas denúncias de corrupção, defendendo a bandeira da ética de forma moralista e correndo o sério risco de ter seu perfil confundido com setores da direita que exigem "ética" e "moralização da política", deixando de priorizar as lutas sociais e o combate ao grande capital.

Ou seja, a tarefa de apresentar uma alternativa de esquerda anticapitalista e radical aos movimentos sociais e à classe trabalhadora brasileira apenas terá coerência quando juntar a crítica (bem-feita, aprofundada, séria, que saiba lidar com o enraizamento social do PT e do governo Lula para poder combatê-lo) ao governo Lula com a crítica ao grande capital.
É bastante equivocado desprezar a atuação no campo institucional, que tem sua devida importância, mas, evidentemente, a luta institucional não substitui a luta social. E é este espaço que a esquerda brasileira deve priorizar, buscar e atuar em frentes de luta comuns com os movimentos sociais.

Apesar das diferenças políticas que existem, é necessário buscar pontos em comum e frentes de luta unitárias, ainda mais em um contexto de crise econômica do capitalismo global e refluxo do movimento de massas. Apenas dessa forma, podemos começar a sair da marginalidade social, ideológica e política e enxergar no horizonte a possibilidade de tensionar e influenciar setores da classe trabalhadora e dos movimentos sociais e estimular a auto-organização popular.

O ato unitário no dia 30 de março com a participação de MST, CUT, Intersindical e Conlutas e os avanços na discussão da fusão entre Intersindical e Conlutas são bons exemplos de que há possibilidade de reverter esta situação. No entanto, a esquerda socialista precisa estar à altura destas tarefas.

Um comentário:

  1. Uma das melhores, se não a melhor análise de esquerda sobre o governo Lula.

    Victor Coelho

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